O Sudeste
Há ainda o aliciamento e grooming (preparação do menor para abuso), assédio online, cyberbullying e indução ao suicídio e automutilação em grupos virtuais – este último normalmente transmitido ao vivo por meio de plataformas de conversas em grupo. Em grande parte, o contato entre vítima e criminoso começa por meio de jogos e grupos de bate-papo, mas pode evoluir para conversas privadas ou crimes cometidos dentro da comunidade online.
“A vítima não tem perfil, pode ser qualquer criança ou adolescente que usa internet. O autores, na sua grande maioria, são homens adultos, mas a gente também vê menores de idade praticando ato infracional análogo com crianças”, afirma a titular da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Cibernéticos (DERCC) da Polícia Civil de Goiás (PCGO), Marcella Orçai, ao Jornal Opção.
Embora falte normas jurídicas, o país possui leis – mesmo que insuficientes – que podem ser aplicadas neste contexto, segundo o presidente da Comissão de Direito Digital e Informática (CDDI) da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Goiás (OAB-GO), Cristiano Moreno. São elas:
- Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014): estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil, definindo algumas responsabilidades dos provedores de internet e redes sociais;
- Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei 13.709/2018): regula o tratamento de dados pessoais, inclusive por redes sociais, visando mais o uso dos dados e a coleta;
- Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei 8.069/1990): garante proteção integral aos menores, proibindo a exposição de crianças a conteúdos inadequados, especialmente para combater a criação, armazenamento e divulgação de imagens ou vídeos com pornografia infantil;
- Código Penal e leis específicas (como a Lei Carolina Dieckmann – Lei 12.737/2012): tipifica crimes cibernéticos como invasão de dispositivos, divulgação de imagens íntimas;
- Combate à Intimidação Sistemática (Lei 14.811/2024): visa a proteção de crianças e adolescentes contra a violência, especialmente nos ambientes escolares e virtuais. Ao criminalizar o bullying e o cyberbullying, a legislação busca coibir essas práticas e promover um ambiente mais seguro para os jovens, especialmente nas redes sociais.
Há ainda o PL das Fake News (PL 2630/2020), que segue travado no Congresso Nacional. O texto busca estabelecer deveres de transparência e responsabilização de plataformas quanto a divulgação de conteúdos falsos. Dentre as principais medidas estão:
- Plataformas poderão ser responsabilizadas civilmente por conteúdo de terceiros quando não cumprirem seus deveres de moderação ou deixarem de agir diante de denúncias;
- Divulgação de relatórios periódicos de moderação: remoções, denúncias, perfis banidos, etc;
- Detalhamento de conteúdos impulsionados ou patrocinados, com identificação do pagador;
- Proibição da criação e manutenção de contas inautênticas (bots não identificados).
“As leis atuais são fragmentadas e, muitas vezes, não acompanham a velocidade com que as tecnologias e os crimes evoluem. A falta de responsabilização clara das plataformas sobre conteúdos ilegais dificulta a fiscalização e aplicação efetiva, deixando muitas empresas atuarem nas lacunas legais sobre moderação de conteúdo, algoritmos, uso de dados biométricos”, afirma Moreno.
O vácuo jurídico provocado pela falta de regras claras e específicas faz com que criminosos se aproveitam da falta de fiscalização, da dificuldade de rastreabilidade de autores e da demora ou ausência de respostas das plataformas a ordens judiciais – fato que favorece não só conteúdos com desinformação e discurso de ódio, como também crimes contra menores.
Cenário em Goiás
Mesmo estagnada em relação às redes, especialistas reconhecem que a legislação brasileira avançou na criminalização dos atos praticados no meio virtual – atualmente considerados hediondos, especialmente quando envolvem produção ou transmissão de conteúdo pornográfico com menores.
A presidente da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente (CDCA) da OAB-GO, Roberta Muniz, diz que há expectativa com a tramitação dos projetos de lei mencionados, que visam proteger crianças na internet.
Em Goiás, segundo ela, há uma mobilização da Rede de Proteção e das instituições que compõem o Sistema de Justiça para debater formas de coibir crimes e proteger as crianças e adolescentes através de audiência pública, que será realizada na Assembleia Legislativa de Goiás (Alego), no próximo dia 29 de abril.
“Embora os dados oficiais sejam limitados, o cenário em Goiás acompanha a tendência nacional de aumento de crimes virtuais contra menores, principalmente após a pandemia, quando o tempo online cresceu drasticamente”, reforça.
Prevenção
Roberta, assim como a delegada Marcella Orçai, reforçam que é possível prevenir e identificar crianças e/ou adolescentes vítimas de crimes virtuais. A advogada afirma que a proteção exige ação conjunta da família, escola, rede de proteção e do Estado. Algumas medidas práticas incluem:
- Monitoramento do uso da internet por pais e responsáveis;
- Uso de contas vinculadas (já previsto em PLs) com controle parental;
- Denúncias imediatas via canais como Disque 100, SaferNet, e delegacias especializadas;
- Escolas devem trabalhar com educação digital e prevenção de abusos;
- Plataformas devem implementar ferramentas de denúncia e remoção rápida de conteúdo ilegal.
“Os sinais são os mesmos de crimes sexuais que não sejam virtuais, como isolamento da criança, queda de rendimento escolar e agressividade. É a mudança comportamental no geral”, concluiu a delegada.
Adolescência
O assunto voltou à pauta com a nova série da Netflix, “Adolescência”, que ganhou destaque em toda a América Latina ao abordar com profundidade e sensibilidade os dilemas da juventude contemporânea. Com quatro episódios de 50 minutos, a produção utiliza planos-sequência, drones e bodycams para compor uma narrativa envolvente que mistura drama psicológico e investigação criminal. A trama parte do assassinato de uma adolescente e revela, aos poucos, os conflitos emocionais e digitais que envolvem tanto os jovens quanto os adultos.
A série retrata a dificuldade de comunicação entre pais e filhos diante das novas realidades virtuais, expondo o distanciamento dos adultos em relação ao universo digital dos adolescentes — feito de jogos online, redes sociais e avatares. A investigação policial, que inicialmente busca evidências físicas, acaba esbarrando em características como o incel (celibatário involuntário) e a masculinidade ressentida. A construção dos personagens é densa, com destaque para o garoto de 13 anos e para uma psicóloga que tenta compreender a origem dos traumas, sem recorrer a explicações simplistas.
Mais do que um thriller ou drama familiar, “Adolescência” oferece um retrato impactante da adolescência em tempos de inteligência artificial, redes sociais e hiperconectividade. O uso com naturalidade de termos como “incel” por adolescentes mostra o quanto a linguagem e as angústias dessa geração já se distanciaram das referências de seus pais. Com isso, a série funciona como alerta sutil para famílias que ainda subestimam os riscos escondidos entre quatro paredes — e nos celulares que seus filhos carregam no bolso.